segunda-feira, 31 de março de 2014

Algo sobre Sophia

Para começar, decidi enveredar pela poesia com a "Obra Poética III" de Sophia de Mello Breyner Andresen. Este livro inclui três livros de poemas, do qual realizei uma seleção tendo em conta os poemas mais apreciados, com os quais posso relacionar algumas temáticas imanentes a Sophia. 



  • Temática da luta contra a injustiça


Túmulo de Lorca



Em ti choramos os outros mortos todos

Os que foram fuzilados em vigílias sem data

Os que se perdem sem nome na sombra das cadeias
Tão ignorados que nem sequer podemos
Perguntar por eles imaginar seu rosto
Choramos sem consolação aqueles que sucumbem
Entre os cornos da raiva sob o peso da força

Não podemos aceitar.O teu sangue não seca
Não repousamos em paz na tua morte
A hora da tua morte continua próxima e veemente
E a terra onde abriram a tua sepultura
É semelhante à ferida que não fecha

O teu sangue não encontrou nem foz nem saída
De Norte a Sul de Leste a Oeste
Estamos vivendo afogados no teu sangue
A lisa cal de cada muro branco
Escreve que tu foste assassinado

Não podemos aceitar.O processo não cessa
Pois nem tu foste poupado à patada da besta
A noite não pode beber nossa tristeza
E por mais que te escondam não ficas sepultado 


Para uma melhor compreensão do poema, eu realizei uma pesquisa sobre a vida da personalidade em questão( Frederico García Lorca). Federico Lorca foi um escritor, pintor e pianista para além de dramaturgo, que foi assassinado por possuir uma orientação sexual designada pouco convencional. Assim sendo, sob a pessoa de Lorca, Sophia promove a recusa da conformidade("Não podemos aceitar") e a constante luta contra as designadas injustiças("Choramos sem consolação aqueles que sucumbem/Entre os cornos da raiva o peso da força.").





  • Temática do gosto pela cultura clássica

Antínoo

Sob o peso nocturno dos cabelos
Ou sob a lua diurna do teu ombro
Procurei a ordem intacta do mundo
A palavra não ouvida

Longamente sob o fogo ou sob o vidro
Procurei no teu rosto
A revelação dos deuses que não sei

Porém passas-te através de mim
Como passamos através da sombra

Antínoo foi um pajem("rapaz de estimação") por quem o Imperador Adriano se apaixonou. Após a sua morte, Adriano mandou construir uma cidade perto do local onde o mesmo morreu, dotou o império Romano de numerosas estátuas(como forma de conservar a sua beleza) e ergueu templos em sua memória.


  • Temática do Tempo dividido
Da Transparência
Senhor libertai-nos do jogo perigoso da transparência
No fundo do mar da nossa alma não há corais nem búzios
Mas sufocado sonho
E não sabemos bem que coisa são os sonhos
Condutores silenciosos canto surdo
Quer um dia subitamente emergem
No grande pátio liso dos desastres

Neste poema encontra-se constante a ideia de sonho como principal "alimento" da alma.


  • Temática da natureza:
Estações do ano

Primeiro vem Janeiro
Suas longínquas metas
São Julho e são Agosto
Luz de sal e de setas

A praia onde o vento
Desfralda as barracas
E vira guarda-sóis
Ficou na infância antiga
Cuja memória passa
Pela rua à tarde
Como uma cantiga

O verão onde hoje moro
É mais duro e mais quente
Perdeu-se a frescura
Do verão adolescente

Aqui onde estou
Entre cal e sal
Sob o peso do sol
Nenhuma folha bole
Na manhã parada
E o mar é de metal
Como um peixe-espada



Gostei bastante deste poema, especialmente porque contrariamente ao que o título indica("Estações do ano") Sophia presta especial atenção ao verão("O verão onde hoje moro/ É mais duro e mais quente"), facto reforçado a partir da referência feita à praia. Serve-se também do "verão" como factor que evidencia a inevitável passagem do tempo("Perdeu-se a frescura/Do verão adolescente").

Um último poema:

Velório Rico

O morto está sinistro e amortalhado
Rodeado de herdeiros inquietos como sombras
Que atormentam o ar com seus pecados


De forma geral, gostei da poesia de Sophia, no entanto, o facto de não gostar particularmente de poesia condicionou-me um pouco. Defendo que a poesia só é verdadeiramente apreciada quando estabelecida relação com a mesma, no meu caso, apenas quando me identifico de alguma forma com determinado poema, é que me vejo capaz de apreciá-lo plenamente.

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