segunda-feira, 2 de junho de 2014

Concluindo com Ruben A.

O livro com que concluo o projeto de leitura é "O outro que era eu" de Ruben A. Gostei bastante deste livro especialmente por não se ter revelado monótono e também pelo facto de se traduzir principalmente pelos pensamentos de um "Eu", maioritariamente irónico e crítico, que narra a história. Este "Eu" encontra-se fragmentado, localizando-se a sua outra parte ("Outro que era eu") em França. Apesar de se encontrarem fortemente distanciados um do outro, o "Eu" apresenta-se como omnisciente, tendo sempre conhecimento absoluto dos acontecimentos ocorridos na vida do "Outro que era eu" e até dos seus estados de espírito. No livro, a história nunca é abordada pelo ponto de vista da personalidade que se encontra em Lyon.



                 



"Ficámos dois- e dois em carne, sem possibilidade de controlar o Outro que se dirigia a sítios e a cidades inverosímeis. Eu sabia onde ele estava, via perfeitamente em que comboio seguia e até, quando numa tarde de inverno ele chegou a Lyon, contentei-me pelo facto de ter ido a um sítio onde, graças a Deus, nunca pudera os pés. O Outro estava em Lyon esquecido no correr dos meses."

Ao longo do livro o "Eu" apresenta-se adoentado e fragilizado, impossibilitado de viver absolutamente, visto que nenhum médico conseguia diagnosticá-lo devidamente. Durante esse período este convive somente com os familiares e com os amigos, sendo uma constante vítima da opinião pública, que após ter conhecimento da sua dualidade, provoca a forte e constante oposição da Cidade ao seu peculiar caso.

"O meu caso, até aí considerado como benigno, começou a apaixonar a opinião pública da cidade quando o Outro se convenceu de que era eu.(...) zunzuns relatavam-se mordazmente à obstinação declarada de alguém que queria possuir um eu alheio.(...) A cidade que até então achara graça à minha história(...) começava a desconfiar.(...) A tudo eu respondia sem uivar. Em falso não me apanhavam. O termómetro raro oscilava. Botijas não me aqueciam nem arrefeciam. Era a cidade que me preocupava.(...)"

Perante a oposição da cidade, o "Eu" conta apenas com o apoio das "feias" e com o esposa do oftalmologista, em detrimento do dos seus próprios amigos. 

"Assim entre o meu amor e as feias da cidade estabeleceu-se um íntimo próprio, real, sem aventura, perfeitamente controlado pelos passos que a cada momento cruzava com as mulheres indiferentes de beleza.(...)Eram elas que me defendiam em comícios de esterilidade, eram todas as frustradas que estabeleciam um alerta ao menor indício de ataque. Estavam por mim (...)".

É feita uma constante referência às Cortes de Cascais, que no final do livro se apresentam para testemunhar a tão esperada uníão entre o "Eu" e o "Outro.

"Saltou para a plataforma, olhou para mim, eu olhei para ele, avançámos uns passos e... pela primeira vez na história da Humanidade deu-se a integração total de um ser em outro.(...) Do oposto a tudo que era eu, que tanto me fez sofrer durante anos, meses, séculos, eu passei à integração definitiva, total, absoluta dentro do próprio ser, processo que o mundo consideraria como início para novas descobertas."

A meu ver, este "Outro", apresenta-se como tudo aquilo que nos está em falta. Pode-se tratar de sentimentos, bens materiais ou simplesmente um alma gémea, uma cara metade.

Um pouco De José Saramago

Este período escolhi ler "In Nomine Dei", um livro de teatro de José Saramago. Baseada em factos verídicos, esta peça, constituída por três atos, retrata as lutas entre Protestantes e Católicos em Munster (Alemanha) em pleno século XVI.

Apresenta uma escrita relativamente simples com a presença constante de alegorias bíblicas, e visto tratar-se de um livro de teatro, lê-se com alguma rapidez e facilidade. 

Em termos de conteúdo transporta-nos para um período de guerra, levada a cabo pela divergência de crenças religiosas, que se arrasta sob o pretexto de se tratar de um desígnio de Deus. Saramago demonstra-nos algumas das mais horrendas atrocidades que o Homem se dispõe a cometer em nome de Deus e põe ainda em evidência o mau uso da crença religiosa (usada como forma de chegar ao poder), facilmente descartável a partir do momento em que se torna inconveniente.
Um facto que achei particularmente interessante foi o de as personagens femininas aparecerem sob a forma de voz da razão, voz da essência da religião. Assim, Hille Feiken sacrifica-se em nome do seu povo, tentando seduzir Franz Von Waldeck (bispo católico que empenhou um cerco sobre a cidade, onde mantinha todos os seus opositores) com o intuito de envenenar o mesmo. Esta fracassa, e apesar de se ter revelado altamente altruísta e promotora da paz, nunca foi reconhecida como tal. Outra das personagens femininas relevantes foi Gertrud Von Utrecht, mais tarde rainha Divara, que tentou sempre de alguma forma demover o seu marido (Jan Van Leiden) de tomar atitudes drásticas e despropositadas, e se apresentou como pacifista e genuína entendedora da palavra de Deus.
Por outro lado, as personagens masculinas apresentam-se como poderosas em termos materiais, no entanto, pobres em termos espirituais, que abusam dos dogmas divinos e os distorcem de forma a que os mesmos vão de encontro aos seus objetivos. Temos então a personagem Jan Van Leiden, marido de Divara e mais tarde rei de Munster, que se diz profeta de Deus e manipula o povo apenas com o objetivo de chegar ao poder. Este facto é comprovado no desenlace, no qual, Jan Van Leiden se dispõe a abjurar perante Waldeck, a troco de poder sobreviver, ao contrário do seu povo e das suas inúmeras esposas que se mantiveram fiéis até ao fim, apesar de isso representar a morte.
Como tal esta obra possui um carácter de consciencialização, que nos leva a reflectir sobre um assunto tão polémico como é o da religião.  


Deixo-vos com o seguinte texto, que aparece como introdução à peça:


    "Entre o homem, com a sua razão, e os animais, com o seu instinto, quem, afinal, estará mais bem dotado para o governo da vida? Se os cães tivessem inventado um deus, brigariam por diferenças de opinião quanto ao nome a dar-lhe. Perdigueiro fosse, ou Lobo-d' Alsácia? E, no caso de estarem de acordo quando ao apelativo, andariam, gerações após gerações, a morder-se mutuamente por causa da forma das orelhas ou do tufado da cauda do seu canino deus?

(...)Não é culpa minha nem do meu discreto ateísmo se em Munster, no século XVI, como em tantos outros tempos e lugares, católicos e protestantes andaram a trucidar-se uns aos outros em nome de Deus- In Nomine Dei- para virem a alcançar, na eternidade, o mesmo Paraíso. Os acontecimentos descritos nesta peça representam, tão-só, um trágico capítulo da longa e, pelos vistos, irremediável história da intolerância humana. Que o leiam assim, e assim o entendam, crentes e não crentes, e farão, talvez, um favor a si próprios. Os animais, claro está, não precisam."